O oxigênio havia se extinguido, a múltipla falência dos órgãos dava fim à tortura de um mês na agoniante UTI. Tudo acontecera de forma violentamente rápida: a dor aguda no peito que assolava de vez em quando, o infarto, a mal sucedida cirurgia. Exames após exames, e a detecção de um tumor no estômago. Após 78 anos de uma conturbada vida de viagens, fugas, mudanças e árdua labuta. Fernando que era Pereira, mas antes de se casar com Irene fora Valente, partia dessa pra outra – melhor mesmo, será? Dos dez netos presentes, somente eu havia lembrado da predileção do avô por cravos brancos. Apenas a minha comoção era a de quem havia perdido mais que a sabedoria idosa do patriarca da família: era praticamente uma parte da paternidade presente em sua vida que viraria pó, depois cinza e mais tarde só osso trancafiado numa caixa enorme de madeira debaixo do solo.
“Esposo querido, pai dedicado e obstinado trabalhador”, era a frase escrita abaixo do nome e datas de nascimento e de partida na lápide recém encomendada. Choravam alguns tios, abaixavam os olhos os irmãos, estremeciam de frio e uma sensação etérea de que a vida era mesmo esse turbilhão que dura segundos, intervalada a períodos de tédio que quase enganavam quanto à eternidade da existência. Queria abraçar o pai, porém as constantes brigas, todo o drama envolvido e sua saída repentina de casa faziam Bianca apenas se debruçar sobre a falta de ombros da avó.
Corria o pranto da face até quase os ombros como se fosse o aguaceiro da alma – no limite – a ser despejado. O cemitério imerso na ventania congelante, as tumbas todas lado a lado, a família assim dispersa e ao mesmo tempo, reunida em torno da situação que em nada se parecia com as celebrações natalinas, os almoços de dias dos pais, mães e aniversários, o concretismo de que depois dos ritos todos, sob os óculos escuros não avistaria mais o corpo esguio e alto made in Portugal, não escutaria mais os conselhos sábios que falavam em juízo, estudos e oportunidades bem aproveitadas.
Fazia um ano, mas o oco das lembranças em preto e cinza ainda servia como pano de fundo da estranha sensação do quão efêmero é estar aqui e não ter ideia de até quando. Seria a paz do descanso uma promessa ou efetivamente um pedacinho de céu prometido? Marcado na certidão de óbito: natural o caos todo de se ir aos poucos e não perceber o quanto ficou pelo caminho. Falecer cabe um pouquinho a todos nós.
(Escrevi esse conto pra oficina que estou fazendo de Criação Literária com o genial Caio Riter. E bem, não é lá muito meu estilo mas, como vocês sabem, eu tenho puta dificuldade em escrever qualquer coisa que fuja do opinativo - basicamente, crônicas. Por isso, sei que não tá "nos trinques" mas, espero que tenha ao menos agradado. Tudo é treino, gente. E ah, esse conto tinha como temática a morte e nasceu de um exercício de desbloqueio em aula. As palavras em negrito eram sorteadas a cada cinco minutos e a gente tinha que produzir o que viesse à mente. Bacana, né? Em casa, dava para dar uma editada. Essa ficou, mais ou menos, minha versão final. Enjoy it!)
Adorei, Camila! Tô me esforçando pra conseguir escrever crônicas, não consigo tirar meus textos da 1º pessoa crítica e ativa no texto, mas tô tentando. rsrs Parabéns, gostei muito. Deve ter sido complicado fazer isso de usar as palavras sorteadas, mas ao mesmo tempo, desafiador. Isso que é bom. Você é muito talentosa e me inspira! Continue nos dando o prazer de ler seus textos! Grande beijo!
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ResponderExcluir"Falecer cabe um pouquinho a todos nós."
ResponderExcluirA morte é progressiva, estamos todo caminhando para ela, todos os dias, às vezes conscientes disso, na maioria das vezes sem perceber que o fazemos, mas é um processo que se inicia ao nascer, e evitamos pensar nisso porque o desconhecido nos assusta.
Seu texto me deu um aperto no coração, a morte está sempre a espreita, a gente a ignora, mas ela sabe a hora de atacar e pronto, e ponto, ponto final no livro da gente.
Ótimo conto, mesmo, desperta a reflexão sobre o que normalmente preferimos evitar.
Parabéns.
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gente, adorei mesmo seu conto. Adoro seus vastos e intensos adjetivos e advérbios sincronizados como um verdadeiro balé. Até que você se dá bem em crônicas Camila, faça mais, adorei. E amei a finalização, "falecer cabe um pouquinho a todos nós". - Herbet Silva
ResponderExcluirTriste, mas real. Ficou incrível!
ResponderExcluirSinto-me um ser soturno (?) ao dizer que gosto de textos assim, pesados; cemitério, morte. Por outro lado, só na ficção mesmo: fugi, simplesmente não fui no enterro de nenhum dos meus avós, pra não guardar essa lembrança amarga e real e deixar só no imaginário, ainda que igualmente dolorosa. Lendo, me deparo com: "o corpo esguio e alto made in Portugal". Ok, basicamente, meu avô. Mudou nome, mudou localização do tumor, mas a morte em si acaba sendo um pouco igual pra quase todo mundo, em qualquer lugar do mundo.
ResponderExcluir"O oco das lembranças em preto e cinza ainda servia como pano de fundo da estranha sensação do quão efêmero é estar aqui e não ter ideia de até quando." É.
Como disse a menina acima, complicado e desafiador o método do sorteio de palavras, mas como sempre, tu te saiu bem. :) Keep going!
Sinto-me um ser soturno (?) ao dizer que gosto de textos assim, pesados; cemitério, morte. Por outro lado, só na ficção mesmo: fugi, simplesmente não fui no enterro de nenhum dos meus avós, pra não guardar essa lembrança amarga e real e deixar só no imaginário, ainda que igualmente dolorosa. Lendo, me deparo com: "o corpo esguio e alto made in Portugal". Ok, basicamente, meu avô. Mudou nome, mudou localização do tumor, mas a morte em si acaba sendo um pouco igual pra quase todo mundo, em qualquer lugar do mundo.
ResponderExcluir"O oco das lembranças em preto e cinza ainda servia como pano de fundo da estranha sensação do quão efêmero é estar aqui e não ter ideia de até quando." É.
Como disse a menina acima, complicado e desafiador o método do sorteio de palavras, mas como sempre, tu te saiu bem. :) Keep going!