Sobre gatos, cachorros e crianças

5.19.2016 -

Prestava atenção enquanto ele tragava o cigarrinho de artista, pacientemente. Ainda bem que eu já estava sentada na escadinha de concreto daquele prédio comercial lustroso, já fechado. Dessa maneira, o sustinho daquelas palavras foi menor.
"Cara, eu quero muito ser pai. Tipo, muito. Eu vou ser, na real. E aí vou fazer manutenção, todo ano, pra ver como andam as coisas e manter tudo em ordem, entende?"
Eu entendia, óbvio. E assenti com a cabeça. Soubesse ele que há duas semanas ou menos eu havia apavorado o cara do momento por, justamente, falar demais em crianças, bebês e parentinhos. Naquele minuto, eu só consegui rir - e sentir cada milímetro do meu corpo ainda mais impelido a pular no colo dele. Não podíamos. No outro dia, revisando os fatos mentalmente pra me sentir bem, eu tive certeza: mais que atraída ou excitada, aquele era um cara que eu conseguia levar à sério.

Das seis fotos que escolheu para os aplicativos, três delas mostravam dois gatos; um filhotinho, malhado com olhos verdes e outro laranja, estilo Garfield, também bem nutrido. Aquilo mexeu com a minha libido. Dei meu like, recebi de volta. Tinha uma profissão que considero massa, uma vida interessante e sabia falar sobre seriados. Marcamos numa chopperia do Bom Fim, perto para ambos. Caí na paixonite quando fui conhecer seu apartamento e o vi brincar com os felinos, tão logo abriu a porta da sala.
"Adotei esses dois com a minha última namorada, mas ela nem quis saber deles quando acabamos. Agora são oficialmente meus"
O modo como os dedos dele afundavam no pelo macio dos bichos, a atenção que ele dispensava ao colocar água e comida no potinho, religiosamente na medida. Aquela paixão de quem tem noção da própria selvageria e se compadece da natureza não-humana. Nada de "odeio gatos, são interesseiros" ou "prefiro cachorros, tenho alergia ao pelo". Pelo contrário. Era sexy, extremamente sexy.

Convivíamos há uns dois meses. Relação dessas apressadas, um sentimento maluco que bateu em ambos e demorou pra achar o caminho de saída. Gostava de beber whisky e fumava charuto uma vez por semana. Trabalhava feito cavalo e se dava a esse e outros luxos, o que eu considerava bastante justo. Eu o acompanhava no álcool algumas vezes, em especial quando trocava a bebida fortíssima por cerveja. Sofria por não ter tempo e tampouco espaço pra adotar um vira-lata cheio de amor pra dar.
"Daqui uns anos, vou estar mais velho e comprar uma casa. Aí vou adotar um cachorro e chamar de Tennessee"
"Por que esse nome? Sei lá, atípico, no mínimo"
"Já deu uma olhada no que tem naquele estado? Umas folhagens muito doidas"
Era desses que chamava cães de rua no Ibirapuera e perguntava raças. Cachorreira que não sou, admirava tanta paixão pela brincadeira, pela efusividade em quatro patas que também ele transpirava. Me sentia protegida, mas também energizada ao estar na companhia de outro mamífero true.

De repente, ele me dizia que não curtia crianças nem cachorros, e de-tes-ta-va gatos - os meus animais prediletos. Mais que um choque, qualquer esperança de levar aquilo adiante brochou internamente. Era ele um homem ou um robô? Que confiança depositar em quem passa a vez na roda de bebê recém nascido, não baba ao ver um filhote de pug ou desconfia da independência felina? Num desenho infantil ideal, meus bonequinhos seriam de papel; mas com um quintal enorme, árvores com frutas no pé, algumas crianças em volta e Garfields e Boos em volta. Vivos.



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